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Da Dieta do Fast-Food Cognitivo à Fome de Foco

Da Dieta do Fast-Food Cognitivo à Fome de Foco

Você já se pegou em um ciclo infinito de vídeos curtos, pulando de um para o outro, e quando percebeu, uma hora inteira se passou? Ou talvez tenha sentido aquela dificuldade crescente de se concentrar em um livro ou em uma tarefa de trabalho por mais de alguns minutos sem sentir a necessidade de checar o celular? Se a resposta for sim, você não está sozinho. 

Vivemos em uma era de estímulos constantes, onde nossa atenção se tornou a moeda mais valiosa, e as tecnologias digitais, especialmente as mídias sociais, desenvolveram mecanismos sofisticados para capturá-la.

Longe de uma visão apocalíptica ou de uma luta contra a tecnologia — que já é parte indissociável de nossa cultura —, proponho um mergulho na neurociência para entendermos o que acontece com nosso cérebro nesse cenário. 

A partir dessa compreensão, podemos construir caminhos para educar nossas crianças, nossos adolescentes e a nós mesmos, desenvolvendo um uso mais consciente e saudável das ferramentas digitais.

Para entender por que é tão difícil desgrudar os olhos da tela, precisamos falar sobre um neurotransmissor chamado dopamina. Conhecido como o “hormônio do prazer”, ele é uma peça-chave no sistema de recompensa do nosso cérebro. Quando fazemos algo que o cérebro interpreta como positivo — como comer algo gostoso ou receber um elogio — a dopamina é liberada, nos dando uma sensação de prazer e nos motivando a repetir a ação. 

As plataformas de mídias sociais foram desenhadas para acionar esse sistema de forma contínua. Cada curtida, comentário, notificação ou novo vídeo no feed funciona como uma pequena dose de dopamina. A psiquiatra Anna Lembke, autora de “A Nação Dopamina”, explica que esse fluxo constante de recompensas intermitentes e imprevisíveis nos coloca em um estado de busca incessante, muito semelhante ao de uma máquina de caça-níqueis. Nunca sabemos quando virá a próxima recompensa, e essa expectativa nos mantém engajados.

O problema é que as redes sociais não são restaurantes, são o fast-food cognitivo abertos 24h. E o cérebro se adapta — mas não para melhor. 

Com o tempo, ele passa a precisar de estímulos cada vez mais fortes e frequentes para sentir a mesma satisfação. Tente viver só de fast-food e veja o que acontece com seu corpo. Agora aplique isso ao seu cérebro: o resultado é o mesmo — fadiga, dificuldade de concentração e a sensação de que nada mais satisfaz. É por isso que os vídeos se tornam cada vez mais curtos, rápidos e alarmantes: eles são projetados para nos dar picos de dopamina cada vez mais intensos, em um ciclo que pode levar à exaustão mental e à dificuldade de encontrar prazer em atividades menos estimulantes.

Essa busca constante por novos estímulos tem um custo direto para nossa capacidade de concentração. O psicólogo e autor de “Foco”, Daniel Goleman, alerta que vivemos em uma “era da distração” que fragmenta nossa atenção. Acreditamos que somos capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo — responder um e-mail, ouvir um podcast e acompanhar uma conversa no WhatsApp — mas a neurociência mostra que a multitarefa é, em grande parte, um mito. 

O que o cérebro faz, na verdade, é alternar rapidamente o foco entre as tarefas, e essa troca constante tem um alto custo cognitivo. Como explica o neurocientista Daniel Levitin em “A Mente Organizada”, essa alternância nos deixa mais cansados, propensos a erros e com uma sensação de produtividade que não corresponde à realidade.

Além disso, a forma como consumimos informação online está mudando a maneira como lemos. A neurocientista Maryanne Wolf, em seu livro “O Cérebro no Mundo Digital”, faz uma distinção crucial entre a leitura superficial (ou “leitura de tela”) e a leitura profunda. A leitura superficial é rápida, focada em encontrar palavras-chave e informações pontuais. É o que fazemos quando “escaneamos” uma página de notícias ou uma postagem em uma rede social. 

A leitura profunda, por outro lado, é um processo mais lento e imersivo. É quando nos dedicamos a um texto longo, permitindo que nosso cérebro faça conexões, analogias, inferências e desenvolva empatia e pensamento crítico. Como Wolf destaca, “quando lemos profundamente, estamos usando muito mais do nosso córtex cerebral”. 

A cultura do clique e da rolagem infinita privilegia a leitura superficial, e o risco é que nosso cérebro “desapreenda” a habilidade de ler profundamente, que é fundamental para a construção de conhecimento sólido e para a reflexão.

Se o cenário parece preocupante, a neurociência também nos traz uma mensagem de esperança, baseada em um conceito chamado neuroplasticidade: a incrível capacidade do nosso cérebro de se modificar e se adaptar ao longo da vida, com base em nossas experiências. 

Durante a infância e, especialmente, a adolescência, o cérebro passa por um processo intenso de reorganização chamado poda sináptica. Imagine o cérebro como um jardim: durante essa fase, ele está eliminando as conexões entre os neurônios (as sinapses) que são menos utilizadas e fortalecendo aquelas que são mais requisitadas. É um processo de otimização que torna o cérebro mais eficiente e especializado.

É aqui que a relação com a tecnologia se torna crucial. Se um adolescente passa a maior parte do tempo imerso em estímulos rápidos e superficiais, as vias neurais associadas a esse tipo de atenção serão fortalecidas. Por outro lado, as vias necessárias para o foco sustentado, a paciência e a concentração profunda podem ser “podadas” por falta de uso. Como aponta o neurocientista Stanislas Dehaene, um dos maiores especialistas em aprendizagem, a atenção é um dos pilares fundamentais para que o cérebro aprenda e consolide novas informações. 

Essa fase de intensa plasticidade, no entanto, não deve ser vista como uma sentença, mas como uma janela de oportunidade. É o momento ideal para guiar crianças e adolescentes, ajudando-os a construir um “andaime” cerebral robusto, capaz de lidar tanto com o mundo digital quanto com as demandas de um trabalho focado e de uma vida reflexiva.

Se não podemos (nem devemos) lutar contra a tecnologia, o que podemos fazer? 

A resposta está na educação e na construção de práticas conscientes. O objetivo não é a proibição, mas o empoderamento. 

Inspirados em autores como Cal Newport, que defende o “Minimalismo Digital” e o “Trabalho Profundo” (DeepWork), podemos adotar estratégias práticas para treinar nossa atenção e a de nossos filhos. 

Assim como cuidamos da nossa alimentação, podemos cuidar da nossa “dieta” de informações, estabelecendo horários e locais livres de telas (como durante as refeições e no quarto de dormir), desativando notificações desnecessárias e escolhendo ativamente conteúdos que agreguem valor, em vez de apenas consumir o que o algoritmo nos oferece.

É importante também reservar blocos de tempo para atividades que exijam concentração ininterrupta. Para os adultos, pode ser um projeto de trabalho; para as crianças, a leitura de um livro impresso, um quebra-cabeça ou um hobby que exija foco. O importante é criar “ilhas de concentração” em meio ao oceano de distrações. Conversar abertamente sobre como as tecnologias funcionam também faz parte dessa educação consciente. Explicar o que é a dopamina, como os algoritmos são projetados para nos manter engajados e como as “bolhas” de informação são criadas transforma crianças e adolescentes em usuários críticos, dando-lhes ferramentas para fazer escolhas mais autônomas.

A mudança de hábitos é mais eficaz quando é um esforço coletivo. Pais e educadores podem dar o exemplo, mostrando que também estão aprendendo a equilibrar a vida online e offline. Criar espaços seguros para conversar sobre os desafios, as frustrações e as descobertas dessa jornada transformam a família e a escola em verdadeiros laboratórios de consciência digital.

Em última análise, a questão não é ser contra ou a favor da tecnologia, mas aprender a navegar neste novo mundo com sabedoria e intencionalidade. Ao entendermos como nosso cérebro funciona, ganhamos o poder de moldá-lo. Educar para o foco é um dos maiores presentes que podemos dar às novas gerações — e a nós mesmos. É a habilidade que nos permitirá não apenas sobreviver, mas prosperar na era digital, construindo uma vida mais profunda, significativa e, ironicamente, mais conectada.

Referências

Dehaene, Stanislas. O Cérebro que Aprende: Os quatro pilares da aprendizagem. Editora Penso, 2020.

Goleman, Daniel. Foco: A Atenção e seu Papel Fundamental para o Sucesso. Editora Objetiva, 2013.

Lembke, Anna. Nação Dopamina: Por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar. Editora Vestígio, 2022.

Levitin, Daniel J. A Mente Organizada: Como pensar com clareza na era da sobrecarga de informação. Editora Objetiva, 2015.

Newport, Cal. Trabalho Focado: Como ter sucesso em um mundo distraído. Editora Sextante, 2017.

Newport, Cal. Minimalismo Digital: Para uma vida focada em um mundo barulhento. Editora Objetiva, 2019.

Wolf, Maryanne. O Cérebro no Mundo Digital: Os desafios da leitura na nossa era. Editora Contexto, 2019.

BBC News Brasil. “O que é a leitura profunda e por que ela faz bem para o cérebro.” 1 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-59121175

ComCiência. “Neurodesenvolvimento e adolescência.” 17 de outubro de 2023. Disponível em: https://www.comciencia.br/neurodesenvolvimento-e-adolescencia/

Juliana Fornari

Juliana Fornari

Juliana Savoy Fornari é doutora em Educação pela UNICAMP e atua há mais de 25 anos no setor, com experiência como professora, coordenadora, diretora acadêmica e atualmente como integrante do conselho estratégico do Grupo Anchieta (SP). Liderou a implantação do ensino híbrido e da EAD da instituição, sempre com olhar crítico e inovador, e hoje coordena um grupo de pesquisa sobre inteligência artificial na educação. Apaixonada por neurociência, acredita em uma educação disruptiva, mas ancorada na ética e na afetividade. Mãe da Clara e do Matheus, encontra neles sua maior inspiração para nutrir reflexões que compartilha em palestras, escritos e no Instagram @julianafornari.educa.

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