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A maçã que a IA mordeu

A maçã que a IA mordeu

Você já parou para pensar que sua percepção da realidade não é tão objetiva quanto imagina? A neurociência nos revela algo fascinante: quando olhamos para o mundo, não estamos simplesmente registrando fatos, como fotografias, mas interpretando tudo através das lentes de nossas memórias, emoções e experiências culturais. E sabe o que isso significa? Que viver em realidades construídas não é novidade da era digital – é parte do que nos torna humanos.

Essa reflexão ganhou força quando assisti a uma entrevista na televisão. Luciano Huck perguntou ao médico e escritorindiano Deepak Chopra, autor de “Digital Dharma”, se a Inteligência Artificial não estaria nos aprisionando em realidades subjetivas. A resposta imediata: “já vivemos em realidades subjetivas há muito tempo”.

Pense em algo corriqueiro: uma maçã. Quando você a vê, seu cérebro não registra apenas forma e cor. Talvez você lembre da infância, pense no lanche, na marca Apple, ou até mesmo na história de Adão e Eva. A mesma fruta pode representar coisas completamente diferentes para pessoas diferentes. Nossa percepção nunca foi neutra – sempre foi um ato criativo de construção de sentido.

Exemplos disso estão por toda parte. Lembra do vestido que viralizou na internet? Algumas pessoas viam azul e preto, outras viam branco e dourado – no mesmo objeto! Isso não era questão de opinião, mas de como nossos cérebros constroem literalmente cores diferentes dependendo da incidência da luz em que estamos – um fenômeno que chamou atenção de neurocientistas como Bevil Conway, que considerou este o melhor exemplo de diferenças individuais na percepção de cores já documentado. O mesmo perfume pode ser “romântico” para uns e “enjoativo” para outros, dependendo das memórias que carregamos.

Observe os símbolos ao seu redor: um anel de casamento é apenas metal, mas representa amor e compromisso. Uma bandeira é um tecido, mas pode fazer pessoas chorarem de emoção. Um diploma é papel, mas abre portas e define carreiras.

Muito antes da IA, já vivíamos em bolhas: a bolha da nossa família, religião, classe social, profissão. A diferença é que agora essas bolhas são digitais, mais amplificadas e visíveis.

O historiador Yuval Harari, autor de “Sapiens” e “Homo Deus”, nos mostra algo ainda mais interessante: as construções mais poderosas de nossa civilização são histórias coletivas que decidimos acreditar juntos. Uma nota de cem reais é, objetivamente, apenas papel com tinta. Seu valor existe porque milhões de pessoas concordam em acreditar na história que ela representa.

Esta capacidade de criar e compartilhar ficções é o que nos permitiu construir civilizações complexas. Um exemplo na educação: um professor que ensina sobre a Segunda Guerra Mundial para alunos no Brasil, na Alemanha ou no Japão está literalmente contando versões diferentes da mesma história – cada uma “verdadeira” dentro de seu contexto cultural.

A Inteligência Artificial funciona como um amplificador disso tudo. Os algoritmos das redes sociais não inventaram as bolhas de informação; eles apenas tornaram mais visível nossa tendência natural de buscar aquilo que confirma nossas crenças. O filtro sempre existiu na nossa mente. A tecnologia só o deixou mais evidente.

Aliás, a tecnologia já vinha moldando nossa percepção há tempos: filtros do Instagram mudaram nossa noção de beleza “natural”, o GPS alterou nossa relação com o espaço, e as redes sociais criaram a sensação conhecida como “FOMO” (medo de ficar por fora), expressão criada pelo estrategista israelense Dan Herman.

A IA pode democratizar conhecimento, mas também espalhar desinformação. Pode conectar pessoas, mas também fragmentar sociedades. Esta dualidade não é um defeito técnico, é um reflexo fiel da natureza humana.

Mas aqui está a questão central: se sempre construímos realidades, que tipo de mundo queremos criar juntos? Esta pergunta ganha urgência quando pensamos no futuro da educação.

Vivemos agora a era das respostas instantâneas, onde a IA pode nos dar informações sobre praticamente qualquer assunto em segundos. Mas isso não nos torna automaticamente mais sábios ou inteligentes. O que se torna verdadeiramente valioso é nossa capacidade de fazer as perguntas certas e, mais importante ainda, de saber exatamente o que queremos descobrir e aprender.

Como observou o psicólogo e pedagogo norte-americano David Ausubel, criador da teoria da aprendizagem significativa, “o fator mais importante na aprendizagem é aquilo que o estudante já sabe”. Hoje, quando qualquer resposta está a um clique de distância, essa sabedoria ganha nova dimensão.

Não basta ter acesso à informação se não sabemos o que procuramos ou por que procuramos. A habilidade de formular perguntas precisas, de identificar nossos objetivos e de reconhecer quando encontramos o que realmente precisamos – essas se tornaram as competências mais preciosas do nosso tempo.

A IA democratizou as respostas, mas amplificou o valor de quem sabe o que perguntar e para que quer usar o conhecimento.

Talvez o maior presente da Inteligência Artificial seja justamente este: nos lembrar de que somos, e sempre fomos, cocriadores da realidade. Como observa Chopra, não precisamos temer a IA como algo alienígena – ela simplesmente reflete quem somos, com todas nossas virtudes e fraquezas humanas. Mas, como alerta Harari, essa reflexão amplificada exige consciência e cuidado: se não formos criteriosos sobre que aspectos da humanidade queremos potencializar, a IA pode causar danos severos ao amplificar justamente nossos piores impulsos.

Por isso, o pensamento crítico deixa de ser apenas uma competência desejável para se tornar uma necessidade de sobrevivência – e cabe à educação desenvolver essa capacidade de questionar, avaliar e escolher conscientemente as narrativas que abraçamos.

Como educadores e cidadãos, estamos diante de uma oportunidade única. Não se trata mais de apenas transmitir conteúdo, mas de formar pessoas capazes de navegar conscientemente neste oceano de informações. Pessoas capazes de construir realidades mais humanas, inclusivas e transformadoras.

A pergunta não é se devemos temer ou abraçar a tecnologia. A pergunta é: que tipo de humanidade queremos amplificar através dela? Se compreendermos que a realidade é construída, podemos participar ativamente de sua construção. Se reconhecermos que as ficções coletivas são poderosas, podemos trabalhar para criar histórias mais justas e sustentáveis.

Em vez de temer a IA como uma ameaça externa, podemos abraçá-la como uma oportunidade para explorar e construir conhecimento. Ela nos mostra que sempre fomos construtores de realidade e nos convida a assumir conscientemente esta responsabilidade.

E essa pergunta, ironicamente, só pode ser respondida por quem sabe exatamente o que quer descobrir sobre si mesmo e sobre o mundo.

Juliana Fornari

Juliana Fornari

Juliana Savoy Fornari é doutora em Educação pela UNICAMP e atua há mais de 25 anos no setor, com experiência como professora, coordenadora, diretora acadêmica e atualmente como integrante do conselho estratégico do Grupo Anchieta (SP). Liderou a implantação do ensino híbrido e da EAD da instituição, sempre com olhar crítico e inovador, e hoje coordena um grupo de pesquisa sobre inteligência artificial na educação. Apaixonada por neurociência, acredita em uma educação disruptiva, mas ancorada na ética e na afetividade. Mãe da Clara e do Matheus, encontra neles sua maior inspiração para nutrir reflexões que compartilha em palestras, escritos e no Instagram @julianafornari.educa.

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