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Mais que digital, mais que presencial: ampliando o olhar sobre a educação

Mais que digital, mais que presencial: ampliando o olhar sobre a educação

O convite para escrever esta coluna veio de um ex-aluno meu, e esse fato transforma tudo. Transforma um simples convite em um chamado cheio de propósito, onde a responsabilidade e o significado da educação se tornam ainda mais palpáveis. Por isso, quero ir além.

Quero instigar e provocar não apenas quem trabalha na área da educação, mas todos que, de alguma forma, se preocupam com o futuro que estamos construindo – pais, gestores, formuladores de políticas públicas e educadores.

Para começar, nada melhor do que abordar o desconforto que só cresce: o descompasso entre a vida digital e a presencial.

Apesar das discussões acaloradas, que muitas vezes pendem para a simples defesa de um “lado”, precisamos de um olhar que vá além da velha e ineficaz dicotomia do presencial vs. digital.

A cultura digital, a cibercultura, é parte estruturante da nossa vida e uma realidade que não vai desaparecer. Negá-la é fechar os olhos para um fenômeno que molda não apenas como vivemos, mas como aprendemos, trabalhamos e nos relacionamos.

E é justamente para compreender como essa realidade digital pode potencializar a aprendizagem que precisamos nos voltar para o que a ciência nos revela sobre como o cérebro aprende. Os avanços da neurociência mostram que o aprendizado significativo, aquele conectado ao nosso repertório pessoal e às nossas emoções, tende a gerar maior retenção de conhecimento. Pesquisas na área da neuroeducação, que unem neurociência, psicologia e pedagogia, reforçam que a aprendizagem afetiva – que mobiliza conexões reais e experiências – é mais efetiva do que o simples acúmulo de informações.

Sabemos hoje que o cérebro não aprende de forma linear; ele aprende melhor quando há estímulo, segurança emocional e sentido naquilo que é ensinado. Se a neurociência nos mostra que a aprendizagem significativa nasce da conexão e do sentido, a cibercultura nos oferece o território fértil onde essas experiências podem se multiplicar. É nesse cruzamento que as metodologias ativas, por exemplo, ganham potência.

Essa compreensão científica nos leva naturalmente às metodologias ativas, que encontram na convergência entre cibercultura e neuroeducação um campo fértil para se desenvolver. E isso não é apenas uma questão pedagógica; já está moldando o perfil profissional exigido no mercado de trabalho. É aqui que a cultura do cyber e a pedagogia se encontram de forma poderosa. As características centrais da vida digital – colaboração em rede, criação de conteúdo e acesso à informação – são a matéria-prima perfeita para as metodologias ativas. Em vez de lutar contra esses comportamentos, a educação pode e deve usá-los como alavanca, incentivando a pesquisa, a prototipação e a apresentação de soluções para audiências reais – comunidades, empresas, organizações – que expandem o alcance educacional para além dos muros da escola.

Um excelente exemplo é a Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP), que coloca o estudante no centro do processo. Ao propor a resolução de problemas reais – como desenvolver soluções sustentáveis para a comunidade local ou criar campanhas de conscientização sobre temas sociais –, essa abordagem desenvolve não só competências técnicas, mas também treina soft skills como empatia, liderança, resiliência e solução de conflitos, habilidades indispensáveis para quem deseja atuar num mundo hiperconectado e competitivo.

No entanto, a resistência ainda é grande, e não sem motivo. Parte da população vê a tecnologia como uma ameaça real, especialmente para crianças e adolescentes.

Os maus exemplos são diários e vão desde atividades criminosas, como golpes, desinformação e cyberbullying, até a exposição a conteúdos inadequados. Ignorar esses perigos seria ingênuo e irresponsável.

Além dos riscos de segurança que observamos cotidianamente, há também os desafios cognitivos que emergem do uso inadequado da tecnologia. Um estudo recente do Massachusetts Institute of Technology (MIT), por exemplo, alertou que o uso excessivo e não supervisionado de ferramentas de IA pode levar a “custos cognitivos”, prejudicando a capacidade de concentração e o pensamento crítico, quando a tecnologia é usada como um substituto para o esforço intelectual, e não como uma ferramenta de apoio.

Mas a proibição pura e simples de nada adianta, pois a realidade digital não vai retroceder. A verdadeira solução para ambos os problemas – tanto para se proteger das armadilhas criminosas quanto para evitar a passividade cognitiva – é a mesma: o desenvolvimento contínuo do pensamento crítico. Essas lacunas de segurança e de uso não devem ser apenas temidas; elas precisam ser apropriadas pela educação. É na escola e na universidade que devemos ensinar, de forma intencional e sistemática, a pensar, a questionar fontes, a identificar manipulações e a usar a tecnologia como uma ferramenta para a autonomia no pensamento, e não para a sua alienação.

Acredito que o caminho é a apropriação consciente e responsável através do que chamo de hibridismo intelectual. Eu mesma utilizo a IA de forma intensa, não para facilitar o trabalho, mas para aprofundá-lo: uso para refinar argumentos, sintetizar dados de pesquisas e encontrar novas conexões. É a tecnologia como parceira intelectual, não como substituta do pensamento.

A educação precisa liderar essa transformação através do hibridismo intelectual – a união consciente entre pensamento crítico e ferramentas digitais. O tempo de decidir é agora. Se não ocuparmos esse espaço, outros – nem sempre éticos – o farão por nós.

Juliana Fornari

Juliana Fornari

Juliana Savoy Fornari é doutora em Educação pela UNICAMP e atua há mais de 25 anos no setor, com experiência como professora, coordenadora, diretora acadêmica e atualmente como integrante do conselho estratégico do Grupo Anchieta (SP). Liderou a implantação do ensino híbrido e da EAD da instituição, sempre com olhar crítico e inovador, e hoje coordena um grupo de pesquisa sobre inteligência artificial na educação. Apaixonada por neurociência, acredita em uma educação disruptiva, mas ancorada na ética e na afetividade. Mãe da Clara e do Matheus, encontra neles sua maior inspiração para nutrir reflexões que compartilha em palestras, escritos e no Instagram @julianafornari.educa.

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